segunda-feira, 24 de maio de 2010

COTIDIANO E ESCOLA

Estive no dia 21 e 22 em Progresso-RS lecionando a uma turma de pós graduação da Faculdade D. Alberto, de Santa Cruz. Minhas aulas são na disciplina "Fundamentos Antropológicos da Educação". Os conceitos se entrelaçaram e, depois de olhar atentamente o caráter reprodutivo da escola, entramos a estudar a cultura e desembocamos no cotidiano como o pilar que sustenta as civilizações e que, ao mesmo tempo, as entorpece. Claro que havíamos estudado o conceito de Antropologia e sua grande divisão em dois ramos, a biológica e a cultural que é a que nos interessava. Publico um dos textos que usamos e que as alunas (há, também, o Valdir) ainda estudarão até a próxima aula.

Aristóteles escreveu que “somos aquilo que fazemos repetidamente”. Nesta frase talvez esteja já um resumo do que os sociólogos e os filósofos chamam, hoje, de “cotidiano”.

De fato, o cotidiano é aquilo que reproduzimos em nossa prática: numa situação dada, as pessoas tendem a repetir aquilo que outras pessoas fizeram, desde que aquele repetição tenha se mostrado eficiente para alguma coisa. Assim, uma pessoa que entra na casa de outra, tira o chapéu; um professor dá nota a seus alunos; alguém que passa por um pobre deitado na calçada de uma cidade, anda rapidamente, sem olhá-lo; a noiva não deve ser vista pelo noivo no dia do casamento, antes da cerimônia; a pessoa bem vestida é atendida melhor e mais rapidamente do que a de roupas pobres ou relaxadas... Ao repetir-se constantemente, aquela determinada prática constitui-se como algo em si, isto é, algo que tem existência própria. A partir daí, passa a influenciar as pessoas, a tal ponto que podemos dizer que o cotidiano é uma força constitutiva para elas. Geralmente as pessoas não se dão conta de que estão envolvidas pelo cotidiano. Na maioria das vezes, o cotidiano se resume num fazer tão “normal” que as pessoas, por causa dele, fazem coisas que não fariam se pudessem tomar distância e refletir a respeito do que estão fazendo. O cotidiano pode ser uma coisa simples, como saudar as pessoas de uma determinada forma, ou algo profundamente grave, como, no tempo da escravidão, pessoas honestas e inteligentes aceitarem que uns fossem donos de outros. Podemos dizer que o cotidiano plasma uma cultura. É a repetição de cotidianos em diversos níveis e de diversos tipos e abrangências que dá consistência a uma sociedade ou a um grupo.

O que produz o cotidiano é a repetição. A repetição leva ao costume, o costume torna-se “normal” e, quando surge a situação daquele determinado cotidiano, a ação é automática. Nem é necessário que cada um de nós repita aquela prática para que vire costume em nós; quando nascemos, somos jogados dentro de uma cultura em que estes cotidianos já se objetivaram e não só estão à nossa disposição para nossa prática, como, mais do que isto, nos conduzem sem que o percebamos. Ágnes Heller dá o exemplo de um indígena dos Estados Unidos que, necessariamente, tinha que se interessar por pegadas, conhecimento do qual muito dependia, coisa que em outras sociedades, como a nossa, nem é lembrada; fala também dos “nobres” de certas épocas que não precisavam aprender a vestir-se porque outros faziam isto por ele, conhecimento este indispensável para cada um de nós. Mais ainda, embora algumas tarefas sejam comuns para nós todos, como comer, dormir, trabalhar (quase sempre), descansar... elas constituem cotidianos diferentes, segundo as épocas, segundo os espaços geográficos e, até, no mesmo espaço e no mesmo tempo, segundo a classe social a que pertencemos.

A repetição como constituição do quotidiano precisa ficar melhor compreendida.

Não é, por exemplo, que todos nós repitamos determinada ação para que ela se eleve ao significado de cotidiano. A repetição, de fato, é da sociedade ou do grupo ao qual pertencemos. Por exemplo: casamos uma única vez (ou algumas nos dias de hoje) e o fazemos segundo um cotidiano preestabelecido; declaramos nosso amor algumas vezes e o fazemos com fórmulas do cotidiano. A repetição social gerou um costume que é, de novo, confirmado a cada vez que alguém pratica aquela ação.

Também é preciso ressaltar que, embora a repetição constitua, por si mesma, o cotidiano, o que faz que esta repetição tenha este resultado é a intenção, o significado que ela encerra. Assim, como exemplifica Ágnes Heller, se alguém se curva muitíssimas vezes, numa academia de ginástica, para fazer exercício, esta repetição não vai gerar o cotidiano porque a intenção não é esta, mas se alguém se curva, uma vez apenas perante uma “autoridade”, estará dentro de um cotidiano e, mais do que isto, o estará fortalecendo, uma vez que há um significado claramente definido no gesto. Valeria a pena aqui pensar toda a importância da ideologia e do senso comum na construção dos quotidianos e, conseqüentemente, na construção das pessoas. Valeria a pena, também, refletir sobre a importância do crescimento da consciência, melhor, como nos aponta Paulo Freire, da superação da consciência mítica e da passagem da consciência ingênua para a consciência crítica. As grandes armas de que dispomos na prática concreta, além do processo religioso construído como crescimento da pessoa humana, são a educação libertadora e o planejamento participativo porque estes dois processos, embora não eliminem o cotidiano como processo constitutivo das pessoas – o que seria impossível e inadequado – ajudam a compreender e a escolher o cotidiano eficaz e, muito mais do que isto, ajudam as pessoas e os grupos a produzirem o cotidiano de acordo com uma intenção de justiça social, de participação e de fraternidade. Quem já não ouviu a expressão “reinventar o cotidiano”?

A reprodução deste cotidiano é, muitas vezes, condição de sobrevivência. Às vezes, esta dependência é literal: se deixarmos de lado algumas coisas preestabelecidas, podemos simplesmente morrer. Mas, certamente, se não for o caso de literalmente desaparecer, o não seguimento de muitos e muitos cotidianos determinados nos deixaria numa marginalidade perigosa. O processo de libertação é, certamente, também, a consciência sobre isto tudo, para evitar a pior escravidão, aquela daqueles que dão a vida pela reprodução continuada de cotidianos que diminuem o ser humano e que são socialmente desastrosos.

Uma das grandes motivações para aceitarmos o cotidiano, sem refletirmos sobre ele, é a poupança de energia. Cada um de nós adota formas de fazer (e até formas de sonhar) que são repetitivas (nas práticas que julgamos menos significativas) para que nos sobrem forças a fim de realizar as ações que nosso coração nos pede com mais intensidade. Então não pensamos cada manhã se vamos tomar banho, se é melhor tomá-lo com água fria ou quente, que tipo de sabão ou sabonete vamos usar, etc. Isto tudo já temos resolvido pelo costume. Em vez disto, fazemos várias ações automaticamente e, assim, temos mais forças para o trabalho, para a família, para aquilo, enfim, a que damos mais importância. Só de longe em longe (ou nunca) paramos e realizamos uma reflexão e uma nova tomada de direção. Isto tem pouca importância quando se refere ao modo de pentear os cabelos, mas pode ser desastroso se estivermos falando, por exemplo, de um modo de ser professor.

É dentro de uma sociedade e dos grupos aos quais pertencemos que reproduzimos (necessariamente? sempre?) o cotidiano. Nascemos num ambiente dado e esta reprodução é fundamental para que pertençamos a este ambiente.

Aí entram as instituições. Em toda a reprodução que o cotidiano representa, há uma importância decisiva delas, começando pela família, passando pela escola que talvez nos interesse especialmente, e chegando a instituições fundamentais como o estado e as igrejas. Elas, as instituições, atentam extraordinariamente para esta situação: organizam esta reprodução estruturalmente, para que as pessoas construam com mais facilidade suas vidas ou, parece que mais freqüentemente, para que as pessoas não questionem e, muito menos, ponham em perigo a ordem social existente. Tanto mais quanto uma sociedade ou um grupo é fechada(o), mais forte é o controle para que a reprodução se faça contínua e eficientemente.
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A importância desta reflexão virá da capacidade que tivermos de passar isto tudo para a escola, de refletir sobre como ela participa da reprodução – seria possível a reinvenção? – deste cotidiano e de propor, para depois encaminhar em cada realidade, sonhos, modos de fazer e de ser, a fim de que, como instituição, a escola passe a produzir cotidiano próprio para o crescimento das pessoas, dos grupos e da sociedade como um todo. Parece-me que, dentre os muitos aspectos em que a reprodução se estabelece, há três – será que eles englobam tudo? – que são fundamentais na escola: a reprodução de uma hierarquia de valores, a reprodução de certas habilidades e a reprodução de conhecimentos. Embora a conversa sobre escolas, em geral, se organize ao redor da idéia da “transmissão” – mesmo quando se fale em construção – de conhecimentos, o fundamental dela tem sido a reprodução de uma hierarquia de valores, em que se inclui, certamente, a reprodução de certas habilidades que convergem para a manutenção de uma ordem preestabelecida. Já chega a ser exasperador o cotidiano domesticador e confirmador das classes sociais que a escola exercita. Não se vê sustentação técnica, científica e, muito menos ética, na reprodução que as escolas realizam através de seus “conteúdos”, de suas metodologias, de suas classificações, de suas séries e disciplinas, de seus vestibulares...

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