sexta-feira, 6 de agosto de 2010

PODE HAVER PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS DECENTES?

Publiquei este artigo, há basante tempo, na antiga REVISTA DE EDUCAÇÃO AEC. Acho que a primeira parte dele é bem boa. Então republico aqui. É muito longo, mas cada um pode dar uma olhada num pedaço. Pode ser até que alguma autoridade educacional o veja. Digo isto porque as professoras e os poucos professores para os quais falo em palestras e cursos me dizem: o senhor - tratam-me assim porque já passei dos 40 anos - o senhor deveria dizer estas coisas aos secretários e (citam muitas autoridades). Fico sem graça sempre que mencionam isto porque às autoridades interessa pôr todo mundo na escola, ter professoras(es) em todas as salas de aula, aumentar a tecnologia, fazer regras, dar o livro didático a tempo, controlar tudo e várias outras coisas que são boas, mas nem imaginam a possibilidade de, realmente, "fazer uma escola para todos", abrindo o currículo escolar para que toda a vida seja aí contemplada, em vez de fazer com que existam quatro ou cinco disciplinas, "especializações" para crianças e púberes.
    Não o revisei. Pode estar com os acentos anteriores, mas lembro que ainda não sou obrigado a escrever ideia e assembleia ou frequente e sequência. Saudações a todos.





PARÂMETROS CURRICULARES NO ENSINO BÁSICO
Perguntei-me quais foram as coisas importantes que aprendi na escola. Depois indaguei-me se tinha escolhido meu trabalho atual por causa de minhas tarefas escolares. Também quis saber se sou pior ou melhor, ética e socialmente falando, por influência desta instituição.

A resposta não foi muito lisonjeira.

Aprendi que, se estendermos o braço direito para o lado em que nasce o sol e o esquerdo para o lado contrário, teremos o norte pela frente, o sul atrás, o leste à direita e o oeste à esquerda. Isto é muito bom, quando for de dia e o sol puder ser visto. Depois aprendi sozinho que, conforme a estação do ano, o sol muda de posição e tudo se atrapalha. Também fiquei sabendo que o acento gráfico em construções como “amá-la” não se deve ao fato de que se suprimiu um “r”, mas porque a palavra é oxítona terminada em “a”. Acho que fiquei sabendo o ano - e o dia e o mês - em que caiu a Bastilha; não estou muito certo disto porque posso ter ficado sabendo por causa das comemorações realizadas todo o ano. E que a corte de Luís XIV era esplendorosa. E que algumas plantas são monocotiledôneas e outras, dicotiledôneas. Haverá algumas que não são nada disto? Que existem leis de Mendel sobre flores vermelhas e flores brancas e flores cor de rosa. Lembro-me que gostei disto.

Acho que é tudo. Talvez mais algumas coisas: que a terra é redonda e que um navio indo embora do porto prova isto; que há quatro estações no ano; que há (ou havia naquele tempo) nove planetas; que houve um regência trina no tempo de Dom Pedro, parece que depois de um e antes do outro; que houve capitanias hereditárias. Exercitei-me em fazer contas com logaritmos e com senos e co-senos, mas não tenho a mínima idéia do que são estas entidades. Cuidado que não sou o único: a maioria dos bons cidadãos não passaria num exame de oitava série.

É bastante coisa. Talvez pudesse encher duas ou três páginas com isto. Sem falar de quase tudo de que ouvi falar, como de batalhas da Guerra do Paraguai, rios, lagos, classificação de animais e plantas, fórmulas muitas, batalhas, povos, até de godos, visigodos (ih! o dicionário do computador diz que esta palavra não existe, mas eu ouvi falar !...) e ostrogodos (outra vez!...)

Sei que a escola não teve nenhuma influência sobre a escolha de minha profissão. Leio muito, o que acho bom, mas penso que é “apesar da escola”. Até um dos castigos que recebi - é o único que de fato me lembro - é por estar lendo um romance de aventuras ou o “Tesouro da Juventude” numa hora em que “deveria” estar estudando Matemática ou qualquer outra coisa destas.

Muito andei na vida com valores que a escola me passou. Muitas vezes foram intolerância, idéias prontas, formalismos... Outras vezes foram coisas boas que me ajudaram na vida.

Contudo, se perguntarmos às pessoas adultas, tanto as da escola como as que trabalham em outras profissões, se é necessário todo este “conteúdo” que ninguém sabe, quase todas dirão que sim. E acrescentarão que a escola está fraca porque não passa isto direito. Estou falando das próprias pessoas que não sabem estas coisas e que não dariam um tostão ou dez minutos do seu tempo para “aprendê-las”. Mais ainda: quase todas dirão que é necessário estabelecer alguma unidade nacional em matéria de educação, através de um conteúdo comum a todo o Brasil, distribuído série a série. Estarão, muitas vezes sem saber (e, até, não querendo isto se soubessem), reafirmando a idéia de que a natureza da escola é reproduzir a sociedade - quer dizer, a cultura; que, para isto, é necessário domesticar crianças e adolescentes e classificá-los, lamentando que a maioria seja reprovada e não termine o primeiro grau, mas, no fundo, desejando que isto aconteça como forma de manter a sociedade hierarquizada.

É por isto que se garantem, em nossa sociedade, coisas tão estranhas como uma lei de ensino que determina formas de avaliação, com recuperações - até preventivas - mil regras operacionais, como se os professores não soubessem o que é sua matéria e para que ela serve... e, sobretudo, que atribui aos egrégios conselhos de educação a determinação de disciplinas obrigatórias e, mais ainda, de conteúdos mínimos.

As “autoridades” educacionais se esforçam. Mandam elaborar listas de conteúdos, capricham na entrega do livro didático, enviam antenas parabólicas, televisões... Falam mal, junto com a população, das escolas públicas e dos seus alunos porque “não querem nada com nada” sobre o sistema de respiração dos répteis, sobre as funções polinomiais elementares, sobre a erosão glacial, sobre o polímero PET...Penso que imaginam seriamente que alguém não especialista na matéria tem que decorar que “os (animais) cordados são divididos em hemicordados, urocordados e cefalocordados - estes são os protocordados - e em agnatos e gnatostomados - estes são os vertebrados.” (Copiei a primeira que me apareceu, do Jornal ZERO HORA de 19 de novembro de 1997, no caderno sobre o Vestibular - coleciono estes cadernos e os da Folha de São Paulo para saber o tanto que estou perdendo)*.

As “autoridades” também mandam elaborar, até “participativamente”, diretrizes curriculares, parâmetros curriculares nacionais, padrões referenciais de currículo; são criativas e, já que querem mudar completamente tudo e até produzir cidadania, espírito crítico, solidariedade, amor ao meio-ambiente... mas não querem mudar uma vírgula na Matemática, no Português, na Geografia, na História...(porque isto domestica adequadamente e classifica com eficiência), criam documentos, documentos, documentos... cada nova administração, novos e “definitivos” documentos, aqueles que vão salvar o ensino.

E este pobre artigo deveria ser sobre se “há possibilidade da existência de parâmetros curriculares decentes e quais seriam eles”.

Ocorre-me dizer que parâmetros curriculares nacionais do tipo dos que foram apresentados seriam tão necessários como parâmetros medicinais. O que quero dizer é que ou conseguimos que o professor seja um profissional que científica e ideologicamente esteja capacitado a ajudar as pessoas a se educarem - em vez de ser um repassador de conteúdos especializados - ou não teremos saída; parâmetros curriculares serão como chuva fina e breve numa grande pedra do deserto, sob o sol e num calor de 50 graus.

Depois, penso que há duas coisas importantes, nas escolas, hoje, às quais “autoridades” e educadoras deveriam dar atenção: a mudança do “conteúdo”, não para criar um outro preestabelecido, mas para que ele seja decidido dia após dia a partir do confronto entre o referencial construído em dada instituição e a realidade global da sociedade e pessoal de alunos determinados; e a preparação de professores para isto.

Penso, contudo, que neste momento há necessidade de orientação às escolas e aos professores, orientações estas que poderiam chamar-se de parâmetros curriculares. Ocorre que, embora se apresente entre nós uma fala insistente sobre participação e, muitas vezes, até um desejo sério de participar, nossa sociedade ainda é verticalista. Quase todos esperam que algo seja decidido de cima para baixo. As professoras e os professores dizem que não podem fazer nada porque o vestibular obriga, porque os conselhos exigem conteúdos, porque as secretarias prescrevem, porque os pais esperam...

Imaginemos, então, um governo que mostrasse a toda a sociedade (através da propaganda que, de qualquer modo, faz) que é preciso que aquelas coisas que chamou de “conteúdos transversais” são, de fato, as que são importantes junto com muitas outras; que uma escola deveria trabalhar, com os alunos, temas e questões que envolvessem Sociologia, Psicologia, Direito, Medicina, Economia, Ética, Política, Administração, Planejamento... Por favor: não para fazer das aulas do ensino fundamental e médio “transmissão” de conteúdo destas especialidades, mas para tratar de temas e questões importantes que, necessariamente iriam envolver estas áreas; provavelmente também envolveriam História, Geografia, Português, Arte, Matemática, Ciências... Não é preciso nem é bom especializar crianças e adolescentes, sobretudo “especializá-los em muitas coisas”.

Concomitantemente, pode-se acabar com o vestibular como forma de ingresso na universidade. Determinar que o ingresso seja feito por sorteio e/ou modificar as formas pelas quais a universidade e as escolas de ensino fundamental e médio vêem esta questão. Em número anterior da Revista escrevi a respeito. Voltei a fazê-lo no livro “Temas para um Projeto Político-Pedagógico” que a Editora Vozes está lançando.

E apresentar, às professoras e aos professores, parâmetros curriculares. Indico algumas características que poderiam ter estes parâmetros.

1. Os parâmetros devem ser uma proposta que libere as escolas de conteúdos preestabelecidos. Que atribua a elas e a seus professores ir determinando o que fazer na sala de aula, a partir da elaboração de seu projeto político-pedagógico, do diagnóstico que realizam com seus alunos e com suas comunidades. Penso até que deveria ser obrigatório apresentar, ao Ministério ou secretaria ou a conselho, a dinâmica deste tipo de planos. Planos que deveriam, sempre, fundamentados num referencial político-pedagógico da escola, começar com uma filosofia da disciplina ou da série, seguir com um diagnóstico da turma, descobrindo a distância a que ela está das competências, atitudes, valores, conhecimentos... incluídos naquela filosofia (este diagnóstico verá, também, situação geral da turma, seus interesses, as possibilidades e os limites para o trabalho) e concluir com a proposta concreta de ações, atitudes, regras e rotinas para aquela turma, este sim o conteúdo a ser trabalhado. Como não há espaço aqui para examinar todo o processo desta descoberta do conteúdo necessário naquele determinado momento, para aqueles alunos concretos, sem abandonar o referencial, cujos parâmetros poderiam ser estudados participativamente sob a coordenação do Ministério, penso que devo citar o livro que escrevi com Carlos Henrique Carrilho Cruz, com o título “Planejamento na Sala de Aula”, como fonte de aprofundamento.

2. Os parâmetros não podem determinar a não ser a obrigatoriedade de a escola e os professores resolverem as questões educacionais - para isto são profissionais - e, talvez, o esquema básico do planejamento. Não há prejuízo, penso, em que apresentem, algo assim já está presente nos atuais, idéias gerais para ajudar os professores a elaborarem as filosofias de suas matérias. Só o próprio crescimento do magistério nacional, através da sua autonomia e responsabilidade, poderá fazer algo para uma educação democrática que ajude a construir um sociedade mais justa, mais solidária, mais democrática.

3. Os parâmetros devem orientar o fim das séries. Quer dizer, não devem mandar que se acabem as séries, mas devem sugerir às escolas que o significado do tempo que nelas se passa só pode ser o de crescimento* de cada pessoa e a contribuição na construção do tipo de sociedade que o grupo em conjunto for definindo. Para isto não são necessárias séries, mas é preciso, a cada momento ter o referencial, diagnosticar e propor. É uma tarefa de gigantes, não porque ela seja tão difícil em si mesma, mas porque o preconceito e o senso comum - às vezes a ideologia - impedem o pensamento. Por ser tarefa imensa precisa ser começada - por educadores e “autoridades”.

4. Os parâmetros precisam pedir às escolas que iniciem a acabar com as disciplinas. Propondo isto para duas etapas seqüenciais. A primeira consistindo na elaboração de planos dentro do modelo que sugeri acima, porque, com isto, professores e professoras de cada disciplina passariam a tratar temas, problemas, questões (sem falar o tempo todo sobre eles, mas coordenando a prática dos alunos) e, necessariamente, seriam abertos espaços para trabalhar cada questão com variedade de ciências, de técnicas, de ideologias... A segunda, na exclusão total das disciplinas e na organização do trabalho a partir de um referencial para as idades (referencial sempre ligado ao projeto político-pedagógico), seguido de diagnóstico e de proposta de prática - modos de ser e ações concretas.

5. Os parâmetros devem ir construindo o fim da nota, do conceito ou de qualquer processo de classificação das pessoas. Precisam estimular as escolas a fazerem isto e apoiar as que o fizerem . Afinal todos concordam que a escola é um lugar para crescer (ou, pelo menos, para aprender) e todos, professores, alunos, pais e sociedade julgam que nota não é importante. A nota é o modo de obrigar os alunos a “estudarem” coisas que os adultos não sabem nem querem saber. Por isto ela precisa ser extinta a fim de que não se tenha este resultado desastroso de que há muito mais alunos que não conseguem concluir o ensino fundamental do que alunos que o terminam. Não estou falando que não haja avaliação – ela é essencial para se verificar a distância a que a turma está daquilo que é o referencial – apenas que não haja classificação.

6. Os parâmetros deverão sugerir a utilização de dinâmicas, de processos ... para que as aulas não sejam uma conversa do professor para seus alunos mas momentos de construção, de estudo, de reflexão. Talvez a mais importante seja o projeto, mas certamente outras dinâmicas são necessárias e possíveis e os professores devem ser estimulados a utilizar as já documentadas e aprimorar outras que forem sendo criadas.

7. Os parâmetros curriculares precisam atingir as faculdades de educação e os cursos de licenciatura. Atingir não significa obrigar. Mas significa, certamente, instar para que trabalhem na formação de professores - e na atualização dos que já estão em serviço - dentro dos novos parâmetros. Estes parâmetros, aliás, poderiam ser gestados pelas centros universitários de educação. É imprescindível que o professor seja preparado não para especializar crianças e adolescentes, mas para entender as relações da escola com a sociedade, para compreender profundamente os processos de crescimento das pessoas e a contribuição de instituições de todo o tipo, inclusive escolas, na construção de uma sociedade.

8. Os parâmetros curriculares necessitam conclamar à ética.



Um comentário:

  1. Querido mestre e amigo,

    Concordo, em tese, com tudo o que o está escrito. Mas a realidade é soberana. Como pai de 2 filhos pequenos, sempre penso que mais tarde eles serão cobrados (o maldito vestibular) por coisas que serão esquecidas em algum canto da memória. Se não for "parâmetros curriculares" uniformes (todo o Brasil), não vejo saída. Vão acabar discriminando àquele que tem (ou não tem) determinado "saber". Que angústia! Um forte abraço. Geraldo Arnt

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