Estou
publicando, no facebook, algumas considerações concatenadas sobre o assunto.
Público, aqui, as dez primeiras intervenções.
CURRÍCULO E
TRANSDISCIPLINARIDADE NA ESCOLA BÁSICA
1.
Entre as muitas questões que a escola básica sugere, a mais importante é a
do currículo. Qualquer mudança nele vai influenciar outras mudanças
necessárias; sem transformações curriculares, as outras serão inteiramente
inócuas. É urgente uma transformação curricular na direção da
transdisciplinaridade. Causa preocupação e constrangimento ver, por exemplo,
que o Conselho Nacional de Educação escreva que
o ensino médio terá quatro grandes áreas e, depois, diga as disciplinas de cada
área, voltando exatamente ao que hoje se faz. Penso que, apesar de os
professores poderem, sozinhos, introduzir mudanças transdisciplinares, as
autoridades têm mais do que a metade das responsabilidades pelo nossa tristeza
escolar. (ver face de 02 junho)
2.
Muitos (autoridades e teóricos da educação, coordenadores...) falam de
interdisciplinaridade e não enfrentam a questão da transdisciplinaridade.
Constroem, assim, um estelionato pedagógico. Na última vez que consegui
explicar isso direito, disseram-me os diretores: “Isto não pode ser feito”.
Pareciam os fabricantes de carroças querendo evitar que se criasse o automóvel.
A interdisciplinaridade, boa para a ação - como a dos médicos – é boa, também,
para o ensino superior ou para qualquer ensino profissionalizante, onde a
especialização que as disciplinas trazem é benvinda. No ensino básico, ela dará
mais força às disciplinas, o que é profundamente nefasto. Por causa de alguns
saberes – de resto mal formulados – os alunos perdem toda aquela amplidão de
saber que construímos e seguimos construindo. A transdisciplinaridade
ultrapassa as disciplinas e prpõe o trabalho com temas, sem o enfoque de
nenhuma disciplina, mas com uso do método científico.
3.
Piso agora em terreno minado. De que valem os exercícios de raiz quadrada
ou os estudos sobre logaritmos? Para que serve decorar as capitanias
hereditárias ou o nome completo de Tiradentes? Que sabedoria é decorar a
análise sintática sem ter o saber que ajude a formular frases com precisão e
clareza? De que me adianta conhecer,
mais do que um médico, as partes da célula? O que fazer, no dia-a-dia, com a
tabela periódica dos elementos ou com a dinâmica dos fluidos? E vejam a beleza
de um grupo de alunos, orientados pelo seu professor, trabalhando sobre: - a
distribuição de renda dentro do Estado, a variação de preços ou do salário
mínimo, a beleza dos números à Malba Tahan – a busca da liberdade por pessoas e
grupos, a existência de países no mundo: causas e consequências – a análise de
dois jornais, estabelecendo comparações e escrevendo artigos para eles – as
diversas funções exercidas por um corpo (sem decorar nada) – a chuva, o vento,
as tempestades, o sol, os planetas... (Terei que seguir para sair deste buraco)
4.
Meu propósito é voltar depressa a falar na transdisciplinaridade. Mas
preciso, antes, afirmar uns pontos que são fundamentais. Não se trata de fazer
da escola um lugar de superficialidade. É preciso que se tenha clareza sobre o
que se quer alcançar e, junto com isto, que se saiba caminhar na direção do que
se quer. A escola terá que ser espaço onde as pessoas, talvez principalmente os
alunos, busquem sua própria identidade e se apropriem de instrumentos para
participar na sociedade. Isto significa trabalhar em três frentes: a dos
valores, a das habilidades e a dos conhecimentos, estes resumidos em duas
dimensões, a de conhecer, cada vez mais, a natureza e a de compreender melhor a
sociedade e a cultura. Para isto é necessário um processo de planejamento que
seja participativo e que seja ferramenta para propor um rumo, para analisar a
prática à luz desse horizonte e para determinar o que se vai ser e o que se vai
fazer para caminhar na direção de tal horizonte. (Estive no congresso do MOBREC
em Santa Maria – RS e, por isso, esta reflexão demorou mais).
5.
Vejam como funcionaria a transdisciplinaridade total no ensino básico.
(Apontarei, adiante, processos, já possíveis hoje, que não vivenciam a
transdisciplinaridade total, mas que caminham para ela). A
transdisciplinaridade supõe o cancelamento de qualquer disciplina, embora
conteúdos disciplinares possam e devam, algumas vezes, ser trabalhados por
pequenos períodos. Na prática, cada turma de alunos, preferentemente agrupados
por idade, teria apenas um professor para ajudá-los a estudar questões da
natureza e temas ligados à sociedade e à cultura, com a finalidade de que cada
um busque sua própria identidade, domine ferramentas para participar na
sociedade, assuma um compromisso social, viva algum tipo de transcendência e se
abra para crescer indefinidamente. Esta proposta não visa a diminuir o leque de
trabalho e de estudos, mas a quebrar limites e a abrir horizontes
incomensuráveis. (Esta reflexão está compacta demais: voltarei para uma
análise).
6.
Repito: as disciplinas são importantes para especializar; os cursos
superiores não podem trabalhar transdisciplinarmente porque as disciplinas são
necessárias para o aprofundamento necessário. Sobretudo a partir do século
dezoito as disciplinas passam a ter importância cada vez maior porque cada ser
humano não podia mais dominar o conhecimento que se avolumava rapidamente. O
modelo de escola atual, esquematizado naquele século, nasce disciplinar porque
– parecia – que o conhecimento repartido em fatias poderia ser dominado por
todos. O desenvolvimento infindável do conhecimento e as condições humanas após
as duas grandes guerras inviabilizaram este modelo: as cabeças mais ilustradas,
desde o último quartel do século passado, insistem no holismo, na necessidade
de não limitar o ensino a algumas disciplinas e de alargar os horizontes do
saber. Até a UNESCO sintetiza esta necessidade na proposta de “aprender a
aprender, aprender a ser, aprender a fazer e aprender a conviver”. A escola,
quando nela trabalham pessoas sensatas, debate-se entre realizar isto e cumprir
as disciplinas obrigatórias (que, nos discursos, fora do que escrevem, as
autoridades educacionais chamam de sugestões).
7.
Sigo comentando um pouco o que está no item 5. Há conteúdos disciplinares
que serão necessários para a participação no campo do trabalho. Poderão ser
cursos técnicos para os que já cursaram o ensino médio ou para os que o estão
cursando. Podem ser cursos específicos para uma profissão determinada ou cursos
mais amplos, que abranjam uma introdução geral a uma área de trabalho, para
pessoas que, depois, buscarão um trabalho específico em empresa e aí se
especializarão. Poderão, também, para estas pessoas, haver cursos rápidos, para
uma preparação imediata a um trabalho de menor exigência. Senai, Senac,
Senar... já fazem isto, mas a oferta ainda é pequena e a agilidade para
adequação rápida ao mercado ainda não existe. É bom acentuar duas coisas a
respeito: não se pode fazer diferença, para entrada no ensino superior, entre
estes alunos e os que seguirem um ensino médio comum (tratarei disto ao falar
no vestibular); tudo isto só faz sentido para um país em desenvolvimento no
qual o ideal de todos cursarem, pelo menos, o ensino básico e os que quiserem
ingressar no ensino superior terem a possibilidade, não pode, ainda, ser
realizado.
8.
Outros conteúdos disciplinares podem ser necessários – neste caso, para
todos os alunos – como base para o domínio de ferramentas para a participação
na sociedade. Vale escrever isto porque o modelo transdisciplinar não deve ser
usado para que todos os alunos vivam a mesma hierarquia de valores, desenvolvam
as mesmas habilidades e dominem os mesmos conhecimentos: os trabalhos escolares
em que se estudam temas, não disciplinas, na forma de projetos de estudo e de
pesquisa, abrem perspectivas para que cada um vá construindo sua identidade com
um aproveitamento próprio, talvez bem diferente ao dos colegas com quem participa.
Surgem duas questões importantes, talvez as mais difíceis numa proposta
transdisciplinar de currículo: pode alguém aprender coisas básicas, necessárias,
sem que outra pessoa lhas ensine diretamente? Quais são as coisas básicas sem
as quais seria difícil uma vida humana digna? Parece difícil responder a
primeira destas questões (eu não tenho clareza disso) porque não temos
experiências de escolas realmente transdisciplinares. Mas sabemos que uma
criança, pela vivência, aprende coisas difíceis, sem intervenção “escolar” dos
adultos; veja-se, por exemplo, aprender a andar e a falar. A outra é de fácil
resposta, embora exija tempo, paciência, sabedoria e humildade. Oxalá as
autoridades organizassem grupo para este trabalho e parassem de emitir
resoluções, pareceres, diretrizes... tudo cheio de conjugações de ideias que
mais atrapalham do que ajudam. No próximo número 9. darei alguns exemplos.
9.
Existem conteúdos (às vezes disciplinares) que são ferramentas para
participar na sociedade. Por exemplo: as operações aritméticas básicas; a leitura
e a escrita; os principais movimentos da História... Quero citar outros
exemplos. Mas antes tenho que explicitar um fundamento para uma melhor
compreensão. Escolas são instituições para a reprodução dos valores, das
habilidades e dos conhecimentos que a sociedade julga necessários em
determinado momento. Neste sentido, escolas são extensões da família, para
fazerem, com mais conhecimento, a tarefa que a família faz espontaneamente. Quando
a criança vem ao mundo precisa ser incluída num mundo humano, numa cultura; sem
isto, ela não caminhará rumo à plenitude humana. Para ser integrada na
sociedade, para sobreviver nela ou, pelo menos, para não marginalizar-se,
precisa de educação – da família, da escola e de outras entidades. Diante desta
tarefa, a escola reproduz o que está na sociedade para que a criança se
acostume ao que a sociedade vai lhe cobrar. Se a sociedade for justa,
enriquecedora, a escola gerará justiça e riqueza interior. Se for competitiva,
com grupos fortes de dominação, valorizando o dinheiro acima de tudo, sem
preocupação com a solidariedade... como hoje acontece, a escola reproduzirá
isto. Houve épocas em que uma sociedade estática, com hierarquia de valores
estabelecida e aceita quase universalmente, eximia a escola de pensar: ela só
precisava reproduzir fielmente. Agora, tudo mudou...
10.
Vejam que, para a escola, a única possibilidade é reproduzir o que está na
sociedade. Estou falando de escola básica, cujo papel é integrar crianças e
adolescentes na sociedade e na cultura. Qualquer escola, neste nível, é
reprodutora. Não adianta inventar coisas como produção do conhecimento ou
construtivismo: a escola reproduz. É claro, também, que não se trata só de
conhecimento; a escola reproduz habilidades consideradas necessárias e,
sobretudo, valores, costumes, conceitos e preconceitos, ideias e práticas;
mesmo que muitos digam que a escola só deve interessar-se pelo saber. Contudo –
este é o ponto crucial – ela pode ser conservadora ou transformadora.
Naturalmente, ela é conservadora, porque, sem pensar, deixa-se dominar pelo
senso comum, pelas determinações autoritárias e pelo “saber” social; de maneira
mais direta e mais clara, pode-se dizer: espontaneamente, ela reproduz o que é
imposto por alguma ideologia dominante. Mas ela pode ser transformadora porque,
na sociedade, nos nossos tempos, há pensamentos divergentes, ideologias
diversas e propostas claras para uma nova civilização. Sempre reproduzindo o
que já está na cultura, embora em menor quantidade, por meio de um pensamento
sobre uma nova sociedade e uma consequente nova educação, tudo isto integrado a
uma prática concreta, esclarecida por um lúcido e adequado processo de
planejamento, construir-se-á uma escola libertadora de processos, ideologias e
pensamentos presos a um fazer que se consome em si mesmo. (Os exemplos do que é
necessário como saber de todos fica para a próxima intervenção).
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